terça-feira, 8 de março de 2011

PEDAGOGIA DA AUTONOMIA (PAULO FREIRE)

É comum encontrarmos nos livros de Paulo Freire a repetição de certos temas. Mesmo dentro de um único livro as diversas retomadas de um assunto são constantes. Em sua Pedagogia da Autonomia, uma tentativa de explicação para essa repetição aparece já nas “Primeiras Palavras” que o autor dirige ao leitor. Segundo Freire, essa repetição tem a ver com a marca oral da sua escrita, mas tem a ver também com a relevância de certos temas e com a relação que as matérias têm umas com as outras.
É visível o envolvimento emocional do autor com o ponto de vista que defende. Ele próprio critica a postura do observador “acinzentado” que alguns teóricos apresentam ao tratar de certos temas. A posição política de Freire é assumidamente do lado dos excluídos. Aceita o condicionamento do ser humano em relação à estrutura social, mas nunca a sua determinação. Dessa forma, é visível a nota de esperança e otimismo nos seus escritos.
Com relação à formação de educadores, o autor destaca, desde o início, a importância de se incluir a ética ao lado da preparação científica. Condena o que chama de “ética de mercado” e a ideologia fatalista do discurso neoliberal, pregando a “ética universal do ser humano” que, segundo ele, é indispensável à convivência humana.
No capítulo 1 “Não há docência sem discência”, o autor ressalta que os saberes considerados no livro são indispensáveis tanto à prática docente de educadores críticos e progressistas quanto à de educadores conservadores, deixando ao leitor a tarefa de observar se os saberes apresentados no livro correspondem ou não à exigência da prática educativa independente da sua postura ideológica.
“Ensinar não é transmitir conhecimentos”, essa é a tese que o autor introduz neste capítulo e retoma nos outros, destacando que, numa relação de ensino-aprendizagem ideal, ambos, professor e aluno ensinam e aprendem. Para defender essa ideia o autor utiliza-se de nove tópicos que aparecem no texto marcado pelos seguintes subtítulos:
1.1   Ensinar exige rigorosidade metódica” O educador democrático tem como dever reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade e sua insubmissão, auxiliando-o a tornar-se criador, investigador, inquieto, rigorosamente curioso, humilde e persistente. Deve ensinar os conteúdos, mas também ensinar a “pensar certo”.
1.2   Ensinar exige pesquisa” A pesquisa é uma atividade inerente ao saber docente uma vez que o conhecimento deve ser construído e reconstruído o tempo todo. Pesquisa e ensino estão intrinsecamente relacionados.
1.3   Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” É preciso uma relação mais “íntima” entre os saberes curriculares e a experiência social dos alunos.
1.4   Ensinar exige criticidade” A promoção da curiosidade ingênua para a consciência crítica deve ser objetivo da prática educativa.
1.5   Ensinar exige estética e ética” O caráter formador da prática docente exige decência e pureza. O professor não pode estar longe ou fora da ética, o ensino dos conteúdos não pode estar alheio à formação moral do educando.
1.6   Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo” É necessário coerência entre o que se ensina e o que se faz. Palavras nada valem se não forem seguidas pelo exemplo.
1.7   Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” A disponibilidade ao risco e a aceitação crítica do novo, assim como a negação do preconceito fazem parte do que Freire chama de “pensar certo”.
1.8   Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática” Momento fundamental na formação permanente dos educadores, a reflexão sobre a prática é um movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer.
1.9   “Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural” É importante propiciar, aos educandos, condições de ensaiar a experiência de assumir-se como uma pessoa social e histórica, que pensa, se comunica, tem sonhos, que tem raiva e que ama.
No capítulo 2 “Ensinar não é transferir conhecimento” o autor insiste na tese já apresentado no 1º capítulo explorando mais nove tópicos que, em muitos aspectos, se parecem com os primeiros.
2.1   Ensinar exige consciência do inacabamento” Os seres humanos inventam a sua existência a partir dos materiais que a vida oferece, porque são os únicos seres que têm consciência do seu inacabamento.
2.2   Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado” a consciência da inconclusão humana dota os humanos da capacidade de atuar de forma transformadora. Somos condicionados, mas não determinados como querem nos fazer crer os fatalismos neoliberais.
2.3   Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando” Esse é um imperativo ético que o professor desrespeita toda vez que desrespeita a curiosidade do educando, seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem etc.
2.4   Ensinar exige bom senso” É necessário bom senso para que o professor exerça a sua autoridade sem autoritarismo. Além disso, para um professor que tenha bom senso, é impossível alhear-se das condições culturais e econômicas de seus alunos.
2.5   Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores” A luta dos professores por melhores condições de vida e trabalho é um momento importante da prática docente. O respeito que o educador deve ter pelo educando, à sua pessoa e ao seu direito de ser é parte constitutiva do respeito que deve ter por si mesmo e pela sua profissão.
2.6   Ensinar exige apreensão da realidade” Segundo Freire, a capacidade que temos de ensinar decorre da capacidade que temos de apreender a realidade e, mais do que isso da nossa capacidade de transformá-la.
2.7   Ensinar exige alegria e esperança” A existência humana não se dá no domínio da determinação, por isso, o educador progressista tem de ser, antes de tudo, alegre e criticamente esperançoso.
2.8   Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível” O futuro é problemático, mas não inexorável. “o mundo não é. O mundo está sendo. (p.76) Para mudar o mundo é preciso transformar posturas rebeldes em posturas revolucionárias. A rebeldia é importante enquanto “justa ira”, mas não é suficiente.
2.9   Ensinar exige curiosidade” A curiosidade é uma espécie de abertura de nosso ser ao mundo. Um dos saberes mais importantes da prática educativa deve ser a promoção da curiosidade espontânea em curiosidade epistemológica.
No capítulo 3 “Ensinar é uma especificidade humana”, o autor sublinha a importância da educação como um ato de intervenção num mundo cuja história é vista como possibilidade e não como determinismo.
3.1. Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade” O professor deve levar a sério a sua formação, entretanto, sua competência científica muito pouco valerá se não estiver associada à generosidade. O clima de respeito, justiça e generosidade entre educadores e educandos é essencial para o ato pedagógico.
3.2. Ensinar exige comprometimento” A presença do professor é sempre política. Não existe espaço pedagógico “neutro”. O espaço em que treinam os alunos para práticas apolíticas é um espaço político reacionário.
3.3. Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo” A educação não é apenas reprodutora da ideologia dominante, assim como também não é uma força de desocultação da realidade que atue livremente. Somos seres condicionados geneticamente, culturalmente, socialmente etc., entretanto, não somos determinados por essas estruturas.
3.4. Ensinar exige liberdade e autoridade” É necessário que o educador consciente conheça os limites sem os quais a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo. O limite preciso ser assumido eticamente pela liberdade, isso porque a liberdade amadurece no confronto com outras liberdades.
3.5. Ensinar exige tomada consciente de decisões” A pretensa neutralidade é uma maneira cômoda de se esconder a opção política. A educação, embora não seja capaz, sozinha, de transformar a realidade encerra em si uma força que o educador crítico pode utilizar em favor dessa transformação.
3.6. Ensinar exige saber escutar” É preciso que o professor respeite a leitura de mundo do educando escutando-o e não apenas fazendo comunicados. Quem tem o direito de dizer precisa entender que não é o único a ter o que dizer. É preciso que os educadores exercitem a escuta como um meio de falar com os educandos e não falar a eles. O papel do educador progressista não é apenas ensinar conteúdos é, antes, ajudar o aluno a reconhecer-se como arquiteto da sua prática cognoscitiva.
3.7. Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica” A ideologia tem um poder indiscutível de anestesiar a mente, confundir a curiosidade e distorcer a percepção. Oculta a verdade dos fatos nos tornando míopes, nos faz aceitar docilmente os discursos fatalistas neoliberais. O educador progressista precisa manter-se inume a essas artimanhas recusando opiniões dogmáticas.
3.8. Ensinar exige disponibilidade para o diálogo” O professor precisa conhecer o contorno ecológico, social e econômico da comunidade da qual seus alunos fazem parte. Precisa diminuir a distância entre si próprio e a realidade hostil em que vive seus alunos. Para isso, é preciso disponibilidade nas relações sem a pretensão de conquistar ninguém ou ser conquistado.
3.9. Ensinar exige querer bem aos educandos” A afetividade é uma disponibilidade à alegria de viver. O Educador lida com gente e, por conseguinte, lida com sonhos e esperanças. Por isso, a prática educativa não pode ser uma experiência fria, estritamente intelectual.
CONCLUSÃO
O livro PEDAGOGIA DA AUTONOMIA: Saberes necessários à prática educativa foi o último escrito pelo professor Paulo Freire, falecido em 1997. Apesar das repetições, esse é um dos seus livros em que a sua concepção de educação aparece de forma mais clara e madura.
Basicamente o livro gira em torno de três eixos:
1º.    A relação entre professores e alunos que deve ser fundada no diálogo construtivo, uma vez que o respeito aos saberes dos educandos é imprescindível na construção do conhecimento. A autoridade do professor é necessária e deve ser exercida sem, contudo, resvalar para o autoritarismo e a arrogância. Além disso, Freire ressalta que a alegria e o afeto devem estar incluídos nessa relação, pois a educação lida com gente, com sonhos e esperanças de pessoas reais. Portanto, é necessário que o educador goste de gente e que tenha disponibilidade para se aproximar da realidade dos educandos numa perspectiva de quem não é dono da verdade, mas de quem está disposto a conhecer junto.

2º.    A necessidade de uma formação humana e científica eficaz, uma vez ensinar exige pesquisa, rigorosidade metódica, conhecimentos sobre o mundo, mas exige também coerência, criticidade e reflexão sobre a prática. Nesse sentido, o professor é visto como um profissional que precisa lutar também pelo reconhecimento da sua profissão junto à sociedade.

3º.    Do ponto de vista ideológico, Freire insiste na possibilidade de mudança, uma vez que a história é vista como possibilidade e não como uma fatalidade. A consciência do “inacabamento” humano nos torna seres capazes de aprender e de melhorar, transformando o mundo em que vivemos. Assim, ensinar, para ele, é desocultar a realidade perversa de um mundo neoliberal em que a “ética de mercado” predomina sobre o que ele chama de “ética universal do ser humano”.


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