Por Ednéia Angélica Gomes
A educação escolar é um tema aberto ao debate, na atualidade, atraindo opiniões tanto de pessoas do povo quanto de especialistas das diversas áreas do conhecimento. Tal fato se deve, em primeiro lugar, à amplitude da experiência escolar, da qual a grande maioria da população participa em maior ou menor grau e, em segundo lugar, à importância que informação e conhecimento possuem na sociedade contemporânea. Entretanto, a contradição existente entre os diferentes discursos leva-nos a crer que, em matéria de instrução escolar, não existem regularidades suficientes para a construção de uma teoria pedagógica que sirva de base para a prática dos seus profissionais. Por outro lado, os baixos índices de produtividade da escola revelados pelas avaliações em massa, atrelados às exigências de escolarização do mercado de trabalho apontam para a necessidade de uma reforma educacional de grandes proporções.
Acredito que uma mudança positiva na educação só poderá ocorrer a partir da criação de consensos sobre, por exemplo, o tipo de cidadão que a escola deve formar tendo em vista a realidade social na qual está inserida e os projetos da população para essa sociedade (manutenção ou transformação da ordem vigente). Assim, proponho que os discursos pedagógicos, tanto de especialistas quanto da população em geral, sejam examinados para, a partir dessa análise, argumentar sobre a importância de se construir um referencial coerente que norteie tanto os cursos de formação de professores e as propostas curriculares quanto as políticas públicas na área. Para isso, valho-me aqui de uma associação entre alguns “lugares-comuns” nas ideias pedagógicas e passagens da obra de Lewis Carroll, com o intuito de desvelar algumas contradições e mesmo absurdos presentes nos discursos educativos.
Os pontos de contato entre a história de Alice e os discursos pedagógicos são muitos, começam pela ideia de que algo diferente precisa ser feito (é preciso mudar, ainda que não se saiba exatamente o quê); passam pela constatação de inúmeras possibilidades, sem que se possa escolher especificamente uma delas, e deságuam na indefinição de objetivos através de propostas muito amplas e vagas que, em geral, tentam conciliar o inconciliável: um ensino tecnicista com vistas à preparação para o mercado de trabalho, com uma educação humanizadora. Ou seja, tenta criar sujeitos humanos para uma ordem social desumana.
A PROCURA DO “LINDO JARDIM” E AS INTENÇÕES EDUCATIVAS
Tal qual a personagem principal da obra de Lewis Carroll, a educação parece estar à procura de um paraíso perdido, ou um “lindo jardim” no qual as coisas funcionem isentas de conflitos. O “cultivo” de cidadãos críticos, criativos e participativos se daria num ambiente de perfeita harmonia onde os alunos, seus conhecimentos, sua cultura, sua personalidade fossem acolhidos e respeitados e os professores exercessem a sua autoridade com brandura e compreensão. Entretanto, essas idílicas intenções educativas sofrem um choque brutal tão logo adentram as salas de aula. Assoberbados com planos curriculares extensos, crianças e adolescentes agressivos e inquietos, exigências burocráticas de avaliação e registro, os docentes logo se convencem de que o jardim “encantado” está em qualquer outro lugar, menos ali.
De fato, a escola, particularmente a pública, é o lugar no qual os problemas sociais confrontam os ideais socializadores mais nobres. Os princípios segundo os quais a educação escolar deve se orientar, previstos nos textos oficiais: a dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos e a solidariedade convivem diariamente com crianças e jovens que estão aprendendo, desde o nascimento, a valorizar bens materiais em detrimento das pessoas. Tal realidade não podia ser diferente uma vez que os estudantes estão expostos, diariamente, a uma mídia que bombardeia a sociedade com necessidades de consumo que não eram sequer imaginadas há algumas décadas. Além disso, a banalização da violência e do sexo, a industrialização da cultura e a falta de opções de lazer rompem as barreiras que antes separavam crianças e adultos, forjando jovens precocemente conhecedores das “realidades da vida”, mas sem preparo emocional para lidar com elas.
Esses jovens chegam à escola e desafiam os professores (pobres seres humanos) que também não estão livres de contaminação pela lógica do mercado, mas que, no entanto, insistem em acreditar que é preciso incutir nos alunos o respeito pela moral e os bons costumes.
A meu ver, é uma grande pretensão querer que a instituição escolar - inserida numa sociedade cumulada de contradições, onde a competitividade e o individualismo imperam – seja um mundo a parte em que os ideais de democracia e solidariedade prevaleçam sobre a lógica da produção e do consumo.
OBJETIVOS EDUCATIVOS QUE AUMENTAM E DIMINUEM
Um outro ponto de contato entre o discurso pedagógico e a história de Lewis Carroll diz respeito ao tamanho dos objetivos educacionais, que aumentam e diminuem da mesma forma que Alice ao comer ou beber algo do País das Maravilhas. Ora a educação é vista como a grande salvadora dos fracos e oprimidos, ora ela é apenas um instrumento de conformação das crianças e jovens à realidade social. Em minha opinião, esse crescer e encolher de objetivos está relacionado às pretensões de quem os enuncia.
Se a intenção for vender livros sobre educação é bom que esses objetivos sejam ampliados. O otimismo e a crença nos poderes redentores da escola devem ser elevados. É bom que se divulguem possibilidades de mudança, experiências bem sucedidas e que se façam críticas a práticas autoritárias e excludentes de algumas escolas e docentes. A escola deve ser vista como uma instituição plena de possibilidades e os docentes (esses pobres seres humanos) devem ser vistos como criaturas super-poderosas imbuídas da responsabilidade de salvar o mundo das vilezas do sistema capitalista, bastando para isso, apenas boa vontade e uma formação mais eficiente.
Se o discurso for político, os objetivos educacionais estarão muito mais relacionados a questões materiais. Serão destacados aspectos relacionados à tranquilidade que as famílias devem poder contar ao deixar os seus filhos na escola. Versarão sobre a qualidade da merenda escolar, a distribuição de kits de material escolar, a possibilidade de ampliar o tempo de permanência das crianças na escola (para que os pais possam trabalhar em paz). Também entrará nesse jogo a importância de um desenvolvimento saudável e feliz para as futuras gerações, mas isso vem em segundo plano, afinal com tantos benefícios é de se esperar que os alunos fiquem felizes. Assim, serão objetivos um pouco menores do que os dos teóricos, mas grandes, ainda assim.
Entretanto, por parte das famílias e dos próprios estudantes, a escolarização está relacionada a objetivos bem menos nobres: alcançar uma colocação no mercado de trabalho. De fato, o aumento das exigências de escolaridade por parte dos empregadores tem sido um dos maiores motivos citados por adolescentes e jovens que prorrogam a sua experiência escolar para além do ensino fundamental. O desenvolvimento da criatividade, do senso crítico e da solidariedade passa bem longe das pretensões de pais e alunos obrigados a sobreviver numa sociedade competitiva.
Assim, apresentados de forma genérica e vaga nos textos oficiais, os objetivos da educação são plásticos e se moldam ao diversos interesses dos seus enunciadores. Enquanto isso, os docentes (pobres seres humanos) acometidos pela necessidade de trabalhar durante dois turnos para garantir o pão na mesa, oscilam entre uma e outra perspectiva sem conseguir aderir a nenhuma delas.
PLURALIDADE DE IDEIAS E CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS – PERSONAGENS MALUCOS
A pluralidade de ideias e concepções pedagógicas é um principio que visa a valorização dos diversos saberes dos professores. Entretanto, tal como é praticada, essa pluralidade está fazendo da educação um “território de ninguém” onde desfilam personagens malucos defendendo pontos de vista desencontrados e contraditórios. E não poderia ser diferente uma vez que a Pedagogia, enquanto área de conhecimento cujo objeto é a educação, ainda não conseguiu instituir um discurso próprio, valendo-se de fragmentos teóricos importados de outras áreas, entre elas a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a Administração etc.
Com efeito, é muito comum vermos professores defendendo calorosamente pontos de vista, às vezes absurdos e totalmente contrários aos princípios nos quais a educação se baseia. Já ouvi quem defendesse a presença ostensiva da polícia militar dentro da escola. É claro que, antes de atirarmos pedras nesses pobres seres humanos é bom considerar os diferentes contextos em que trabalham. Uma grande parte dos profissionais da educação já foi vítima da violência do tráfico de drogas que salta os muros da escola. Entretanto, ainda assim, seria bom considerar as coisas com mais prudência antes de sair “falando pelos cotovelos”.
A forma como cada professor cuida da gestão de sua sala de aula é um aspecto em que se observam as maiores disparidades. Nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio é comum uma mesma turma contar com exigências divergentes por parte dos professores. Enquanto alguns incentivam a participação dos alunos promovendo debates de ideias, outros impõem total silêncio e passividade. Também com relação a currículos, metodologias e avaliação de aprendizagens os pontos de vista são diferentes. Se não existe sequer um consenso sobre o que deve ser ensinado e aprendido em cada etapa da escolarização, como esperar que as medidas avaliativas sejam justas e eficientes?
Devido à heterogeneidade de pontos de vista e a falta de pilares sobre os quais fundamentar a sua prática, os professores constituem uma categoria profissional incoerente e vacilante, o que faz com que contem cada vez menos com o prestígio da sociedade. Além disso, essa imprecisão dá ensejo a que qualquer pessoa se avente a palpitar na sua área.
RAINHA DE COPAS E A IDENTIDADE DOCENTE
Por fim os professores (pobres mortais), cada vez mais responsabilizados pelo fracasso da educação escolar e a rainha temperamental que quer condenar todo mundo à pena de morte.
Considero injusto esperar de sujeitos - que como a grande maioria da população, sonham com seu carro zero, sua TV de plasma, sua casa própria - uma atuação que mude os rumos da atual lógica social. Entretanto, é impossível desconsiderar que uma boa parte desses profissionais utiliza a docência como uma forma de descarregar complexos e traumas de infância e dar vazão a desejos recalcados.
A prepotência com que grande parte dos professores se dirige aos seus alunos revela a existência de um frágil equilíbrio emocional. Boa parte desses profissionais descarrega nos alunos a grande frustração, a falta de sentido e o aborrecimento do exercício da sua função. É na sala de aula, onde se consideram “autoridade máxima”, que o poder lhes sobe à cabeça e um gesto de indisciplina qualquer é tomado como uma ofensa pessoal.
Acredito que tais comportamentos estejam relacionados à decepção que a grande maioria dos professores experimenta em relação à profissão escolhida. “Não era nada do que eu queria” dizem muitos que entraram na profissão porque gostavam da área de conhecimento, mas não tinham a mínima ideia do que seria estar em contato diário com um número enorme de crianças e adolescentes.
CONCLUSÃO
Embora não seja mais a única (nem a mais eficiente) instância de socialização do conhecimento, a escola ainda tem uma importância vital no seio da sociedade brasileira. Talvez pela obrigatoriedade do ensino fundamental ou pelo fato de ela ainda representar uma esperança para as classes economicamente desfavorecidas encontrarem uma colocação na engrenagem capitalista. O fato é que, apesar da sua importância, a escola tem caído, progressivamente, no descrédito social.
A causa disso, a meu ver, está relacionada com a inconsistência dos discursos educacionais que, por se prestarem a interesses diversos, não conseguem instituir uma base teórica que fundamente a prática dos seus profissionais. Ao contrário dos médicos e dos juristas a educação não possui um código de ética e cada educador baseia as suas atitudes em experiências de vida, estados psicológicos e situações da prática cotidiana, sem uma reflexão sobre o sentido e o teor dos seus atos.
Dessa forma, sugiro que a pedagogia abandone as suas pretensões salvacionistas e se empenhe em dialogar com a sociedade para construir alguns consensos na área da educação. É importante definir, por exemplo, que tipo de mudanças são desejadas e de que forma a educação pode contribuir na implementação dessas mudanças. Agindo dessa forma, acredito na instituição de um discurso essencialmente pedagógico em que algumas decisões sejam tomadas no sentido de exigir que um mínimo de coerência seja observado pelas instituições escolares e pelos professores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário